segunda-feira, 26 de março de 2012

Amanhã é Domingo

Amanhã é Domingo, disse ele, por cima do sorriso mais aberto e espontâneo que conseguira ensaiar em vários anos de desejos abafados. “Vejo-te amanhã?” tinha-lhe eu perguntado por cima da minha ingenuidade quase perdida em vários anos.

Amanhã é Domingo, disse ele, por trás do seu olhar de sincera confiança e intimidade e eu vi todo o seu esforço para que eu não visse, aquilo que eu vejo quando olho nos seus olhos e o sinto dizer Amanhã é Domingo.

Amanhã é Domingo, repeti eu, por cima do sorriso mais doce e tímido que conseguira ensaiar em vários anos de sorrisos inconformados.

Amanhã é Domingo, repeti eu, e ele viu por trás do meu olhar a sincera aceitação que eu mostrei mas esqueci de sentir anos atrás.

Amanhã é Domingo, repetiu ele, na necessidade de reafirmar o Domingo como apenas Domingo, apenas um dia na semana. Eu calei a insegurança e ele viu contentamento.

Amanhã é Domingo, repetiu, com o seu sorriso fácil – forçado – só eu sei – tentando mostrar tudo o que para além dos Domingos há entre nós. Ele mostrou a segunda e eu vi o dia antes, ele falou na terça e eu temi o sábado. Ele não mostrou mas eu vi. Eu vi. Eu vi.  

Amanhã é Domingo, repeti com o meu sorriso treinado – forçado – só eu sei – tentando esconder a tristeza dos Domingos em que fico sozinha chorando o desejo secreto de trocar todos os dias meus pelos Domingos que não me dá. Ele não mostrou mas eu vi. Eu vi. Eu vi.

Ele mostrou-me os finais de tarde, passados todos os dias. Todos os finais do dia, num quarto arrendado, numa rua estreita, vestidos pelo desejo e desnudados pelos lençóis. E eu fechei os olhos e vi os amanheceres a dois onde eu não estou, os jantares tardios debaixo da luz amarela da cozinha enquanto eu janto sozinha numa sala vazia.

Amanhã é Domingo, pensámos os dois, suspirando para disfarçar a ansiedade de não nos vermos um dia, de não nos termos um dia, de não nos sabermos um dia. Um dia. Apenas um dia. Como eu queria ter na tua semana esse um dia.

Amanhã é Domingo, pensou ele, e viu os chinelos junto ao sofá, a chávena de café aquecendo a mão e o jornal aberto sobre os joelhos para ver o dia lá fora e esquecer o de dentro.

Amanhã é Domingo, pensou ele, e viu as cartas cansadas sobre a mesa ao final da noite. Viu o gelo derretido no final dos copos, no final das conversas, no final das vidas, que já não são nossas, mas que se recordam ainda e impacientemente se revivem. Viu o peso de muitos anos que não o fizeram sentir-se feliz.

Amanhã é Domingo, pensei eu, e vi os sorrisos trocados, por trás das mãos encontradas em locais onde as mãos não andam nem se esperam, vi os beijos tímidos, que já só tímidos podem ser, por entre os flashes das fotografias de Domingo.

Amanhã é Domingo, pensei eu, e vi o corpo dela meio despido sobre a cama, no final da cama, no final da noite, no final da vida. Quando a vida já não sabe ser outra vida mas as vidas se querem ainda, reencontram, rebuscam. E eu me sinto triste assim sem ti, que não consegui ter em tantos anos.

Domingo é um bom dia, disse ele, sem saber o que dizer, quando sentiu em mim a tristeza de saber já ser Domingo novamente.

Domingo é um bom dia? Disse eu com o olhar, quando o perguntar não soube fazer-se pergunta.

Domingo é um bom dia, disse ele, querendo mudar rapidamente o assunto. Vestiu o seu tom grave - tão natural! não o soubesse eu  ensaiado para fugir dali – e falou de como a Segunda se segue ao Domingo, da Terça que vem depois e de tantas coisas que ele diz quando não diz nada e que eu não oiço quando a única coisa que faço é ouvi-lo.

Domingo é um bom dia, disse eu, quando senti que mais nada poderia ainda dizer. Guardei a minha mão para mim, porque sei que não são minhas as suas mãos quando me fala assim. Olhei com um olhar vazio, porque sei que não são meus os seus olhos quando me olha assim. E bebi todas as suas palavras, mesmo sabendo que não fala para mim quando me fala assim.  

Mas não foi Domingo ainda ontem?, perguntei eu, quando me calei no meu silêncio.

Mas não foi Domingo ainda ontem?, perguntou ele, quando não teve coragem de dizer mais nada.   

Amanhã é Domingo, repetimos os dois, enquanto nos vestíamos em silêncio e nos despedíamos com os pequenos gestos de sempre.

Domingo é um bom dia, disse eu, na última vez que nos beijámos, quando quis que o beijo fosse mais o mais forte e quente dos nossos beijos mas também o mais suave e descomprometido de todos eles.

Domingo é um bom dia, disse eu, enquanto lhe perguntava se podia sair eu primeiro naquela noite, enquanto o ouvia responder que sim, acenando com a cabeça e sorrindo demasiado. Que fosse eu primeiro, que tomasse cuidado para não ser vista, que chegasse bem a casa, que passasse um bom Domingo.

Domingo é um bom dia, disse eu, na última vez que nos vimos, quando olhei sobre o ombro ao sair pela porta e murmurei quase sem mexer os lábios; quando desci a rua estreita e mal iluminada, sentindo as gotas que depois da chuva ainda pingavam das árvores; quando fiquei descalça e caminhei junto à linha do comboio.

Domingo é um bom dia, soube finalmente quando sorri, pensando que, depois de tantos anos, um Domingo seria finalmente meu; quando esperei pela luz que se aproximava e atravessei… Sim, Domingo é um bom dia... para o meu funeral.

2 comentários:

  1. Amigos da escrita,
    Este já é antigo mas como continua a ser o meu preferido (não o melhor mas o meu preferido...)QUIS PARTILHAR

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  2. Obrigada Anabela por compartir este belo texto connosco, gostei muito o Domingo é sempre um dia especial e às vezes difícil....

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